Doze horas de asfalto – e muito chão batido – com as bandas Maestro Sujo e o Sanatório Gotham e Sálvia di Vinil.
Afinal, de que se trata realmente “viver o rock”?
Perguntinha cabulosa, difícil pacas de se responder. Passível de inúmeras conclusões, cada qual de acordo com o estilo de vida e ponto de vista de seu respectivo debatedor. Entretanto, ainda que eu não me sinta confiante pra oferecer uma definição categórica sobre o tema, poderia arriscar aqui descrever um número de situações a respeito.
Eu começaria dizendo que viver o rock é encarar intermináveis horas de estrada numa van lotada, intoxicando massivamente o organismo, parando a cada trinta minutos pra que todos eliminassem seus resíduos alcoólicos no acostamento de uma RS perdida nalgum ponto obscuro do estado, cantando em coro de Beatles a Raul Seixas, ouvindo o motorista lembrar que percorreu sete mil quilômetros entre ida e volta até a Bahia num pré-histórico Fiat 147 e abrir seu coração ao afirmar que as bandas de pagode são as mais chatas e arrogantes de se transportar; ousaria acrescentar que viver o rock é se perder no meio de um labirinto de vinte quilômetros de chão batido mergulhado no breu, tentando encontrar o festival na tal cascata de Marau e torcendo pra que a única alma viva das redondezas a conhecer o lugar e prestar uma ajuda providencial não fosse um psicopata ao estilo Texas Chain Saw Massacre.
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Quando recebi o convite das bandas Maestro Sujo e o Sanatório Gotham e Sálvia di Vinil pra participar da indiada rumo ao La Naturaleza Festival, na cascata da Pedra Grande, eu já imaginava que as condições não seriam das mais confortáveis, mas tinha certeza de que a viagem renderia boas risadas e me deixaria por dentro do que duas das bandas proeminentes da cena underground atual são capazes de fazer durante a penosa escalada ao reconhecimento. Nesse sentido, palmas pras quatro gurias (duas gestantes, inclusive) que integravam a quadrilha – mostraram que viver o rock vai muito além de postar vídeos no You Tube, conferir shows somente nos Opiniões da vida e copiar trechos de letras no Facebook. Viver o rock é estar junto de seus pares, acompanhar as bandas tendo o meio do nada como destino, sofrendo na pele o desconforto da estrada, dançando todo o repertório de ambas as apresentações e segurando o ânimo ao longo da madrugada inteira.
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A impressão que tive quando chegamos ao La Naturaleza era a de que os doze apóstolos do mal invadiam uma festa da Ufrgs pra adicionar uma pitada de tempero suburbano aos carinhas de cabeleira rastafári e meninas vestindo saias que desciam aos pés. Uma galera animada, sambando ao ritmo do Bloco da Laje, respirando a doce “vibe” woodstockiana às margens de um córrego que brotava de uma imponente cascata. Todos felizes, tudo paz-e-amor. Até as bandas de rock subirem ao palco...
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Há um tempo venho sendo atormentado pela ideia de que o público gaúcho já não se identifica com o filho bastardo do blues. E a experiência dessa viagem, de certa forma, meio que majorou o pesadelo: seja em Porto Alegre ou no interior do interiorzão, a plateia gaúcha parece já não dar mais bola pras bandas autorais que o Rio Grande do Sul produz. A Maestro Sujo e o Sanatório Gotham e a Sálvia di Vinil me ensinaram que viver o rock é tocar pra uma audiência pequena porém fiel, sem se importar com a debandada da maioria dos presentes, talvez cansados com a folia carnavalesca que antecedera nossa chegada ou desconhecedoras da qualidade que os grupos em questão oferecem.
Seja como for, presenciou-se dois shows e tanto. Entre um trabalho de originalidade memorável e muita influência de Mutantes, Beatles, Titãs e Pixies, a Maestro e a Sálvia cantaram que viver o rock é driblar eventuais problemas de equipamento utilizando grande capacidade de improviso, experiência no circuito alternativo, carisma, amor incondicional à música e, acima de tudo, encontrando força em suas próprias canções, amparados pelo talento como artistas e compositores. Escreveram, nas paredes do ônibus adaptado como palco, que um acorde distorcido bem posicionado e uma batida 4/4 suingada bastam pra se entender o rock, sem muitas delongas e eliminando quaisquer definições que se possa conjeturar a respeito. De Você não pode comigo a Embriagado, restou clara a sensação de que o rock, no fim das contas, é principalmente diversão...
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Cinco e meia da matina, descendo uma estrada sinuosa praticamente espremida por duas encostas, a galera bebaça na parte de trás da van jogando conversa fora, piscando entre um cochilo e outro, me dou conta de que a neblina esconde a visão de qualquer coisa que ultrapasse dois metros a frente. Não se enxerga nada!
Penso “Porra! Desse jeito nós vamos morrer!”
Olho de relance pro motorista do meu lado. Alerta. Profissional. Paciente. Uma puta ressaca devastando o melão. Pálpebras pesadas. Desisto.
“Ah, que se foda! O cara dirigiu sete mil quilômetros num 147! Rock! Nós não vamos morrer... e se isso acontecer, que se foda! Rock! Eu só quero dormir!”
Dor de cabeça.
Escuridão.
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Vocês podem conhecer melhor as bandas nos links abaixo:
MAESTRO SUJO E O SANATÓRIO GOTHAM
Maestro Sujo - voz e baixo; Guilherme Figueiredo - guitarra e voz; Mateus Machado - bateria.
Nurinho - voz e guitarra; Júlio Pires - voz e guitarra; Lana Jones - voz e baixo; Rafael Pinheiro - bateria.
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Meus agradecimentos a todos os envolvidos na viagem e no evento, tanto pelo convite como pela parceria nessa noite mutcho lôca.