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Jim Morrison

PIRA FUNERÁRIA

Try now, we can only lose

And our love become a funeral pyre.

The Doors, Light My Fire.

Meados da década de oitenta. O americano desembarcou no Salgado Filho vindo de Buenos Aires num vôo direto da Varig. De batismo, chamava-se James. No passado, fora conhecido por Jim. Já o passaporte apresentava um nome sem qualquer sentido. No guichê da Receita, a fiscal achou graça de sua assinatura no rodapé da declaração alfandegária: mr. Mojo. Mas que diabos? Deixou escapar um sorriso de deboche, mas o americano não se importou. Era do tipo cuja aparência revelava no ato um profundo desdém em relação aos medíocres e ao seu ridículo senso comum. Nem gordo, nem magro, apenas inchado pela bebida. Devia ter uns quinze anos a menos do que parecia. Provavelmente fosse drogado. A barba, grossa feito mata fechada, cobria-lhe todo o pescoço. As roupas, sujas e amarrotadas. Um pária típico daquela geração em que as gentes de visual bizarro se proliferavam nas áreas urbanas.

Jim MorrisonPegou o metrô na estação Aeroporto em direção ao Centro. Não conhecia a cidade, deixava-se levar pelo instinto. Sentiu prazer em ser mais um anônimo espremido pela massa de proletários nas entranhas daquele trem de terceiro mundo. Fossem outros tempos, puxaria suas genitálias pra fora e mijaria por todo o vagão. Encharcaria os velhotes, as dedicadas estudantes universitárias, os brutos operários e inclusive a si mesmo, porque sabia que todos ali formavam um único organismo. Pensou nisso durante o trajeto. E então gargalhou. Acabou sendo jogado pra fora na estação Rodoviária por uma gangue de carecas neonazistas. Teve sorte de não morrer linchado.

“I am Lizard, the King! I can do anything!”, gritou. Nenhum dos populares ao redor entendeu bulhufas, porque naquela época ninguém falava inglês em Porto Alegre, com exceção de alguns músicos, escritores e uns poucos doutos. Então o americano desatou a caminhar sem rumo. Subiu a Elevada da Conceição em passos desconjuntados e cruzou fascinado o túnel diparando gestos obscenos contra os veículos até finalmente parar em um boteco da Osvaldo Aranha. Já escurecia. Logo à entrada, pôde vislumbrar os inúmeros recipientes de vidro dispostos pelas prateleiras. Continham líquidos de todas as cores, frutas de toda sorte e alguns abrigavam mesmo cobras e aranhas em conserva. O americano não podia crer no que via.

Dirigiu-se ao senhor por trás do balcão, pôs a mão no peito e disse pausadamente: “I-am-Mojo!” E o atendente, que tinha anos de noite e de bobo não tinha nada, compreendeu a intenção. Repetiu o gesto do americano e respondeu: “Eu sou Júlio, mas todos me chamam de João! Name: João!” O americano repetiu: “John?” O dono do bar ratificou: “Sim, João!” E eis que um elo foi estabelecido. O gringo largou uma moeda de um dólar no balcão e apontou para um dos vidros, o que acreditava conter a bebida mais violenta do bar, dada sua cor verde-limão. “What is it?”

“É uma cachaça”, respondeu o proprietário. “Name: Pira funerária!”

Bar do João na OsvaldoO americano, espantado, sentou junto ao balcão e de uma talagada matou um copo cheio da tal aguardente. De fato, era uma bebida forte. Experimentara em sua vida secreta na Argentina coisas capazes de dissolver o esôfago, mas aquele negócio descia incendiando o espírito. Mirou as paredes e viu índios dançando ao redor da fogueira; um xamã balançava os braços num ritual profano invocando a energia de mil ancestrais enquanto Huxley lhe abria as portas do infinito e revelava rostos estranhos e disformes susurrando impropérios no Túmulo do Soldado Desconhecido.

Minutos passaram até que o americano retornasse de seu delírio subversivo. A esta altura, o gosto de ácido sulfúrico da bebida desparecera. O homem de outro nome a quem chamavam João sorria sarcasticamente, mas ele não se importou. Era do tipo que desdenhava da mediocridade alheia. Apenas tirou outra moeda do bolso e pediu:

“Just give me one more shot, John!”

Jim Morrison

Vocês podem conferir essa e outras histórias sobre Porto Alegre no blog ContraVersus, do dinamico escriba Diego Quadros.

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